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5 de setembro de 2011

Fabrício Carpinejar retrata Constantina, onde nasceu sua mulher

A infância da milha mulher

FABRÍCIO CARPINEJAR

           Eu imaginava como teria sido a infância de minha mulher: onde cresceu e como formou seu temperamento. Desejava tê- la conhecido quando pequena: o que ela diria para mim se eu fosse seu coleguinha de jardim? Será que me cuidaria e pediria para que limpasse a mancha de pasta de dente no rosto como faz hoje? Será que me amaria quando ainda não me amava?
           Decidi reconstituir a primeira década de vida da minha esposa Cínthya Carina Santos Verri, médica e psicoterapeuta, que completou 31 anos ontem. Fui visitar sua terra natal, Constantina, município de 10 mil habitantes, situado a 355 quilômetros de Porto Alegre, no extremo norte do Estado.

           Ela me falava que Constantina era uma cidade vermelha. E vi que é mesmo, com barro manchando as pedras das calçadas. Ela me falava do cheiro de madeira e de hortelã de manhãzinha. E constatei o incenso natural descendo a ladeira da João Mafessoni. Ela me falava das ruas largas. E confirmei que são mesmo, folgadas como roupas de gestante.
           E observei muito mais; que os moradores confiam um nos outros e põem os tapetes na grama da praça para secar ao sol e murmuram boa- noite para dormir a sesta. Cínthya nasceu de parto normal em 1980, no Hospital da Comunidade, dirigido pelo seu pai Ciro.
           Ela morava numa casa de esquina, ao lado do ambulatório, junto da mãe Wanda e seus dois irmãos mais velhos Ciro Gustavo e Ciro Ricardo.
           – Ela chamava a casa de “ três garagens”, por ser o único imóvel na localidade que apresentava a trinca de box – acrescenta sua professora da 2 ª série, Neusa Ana Giacomini Rosa, 53 anos.
           – E se sentia encabulada por ser filha do médico, fugia de privilégios – completa.
           Por mais que tentasse desaparecer, a caçula da famíliaVerri chamava a atenção pela elegância. Sua mãe arrumava um jeito de diferenciá- la, sem desobedecer ao uniforme obrigatório da Escola Santa Terezinha. Diante da exigência da blusa branca e do abrigo laranja, ela surgia com uma inacreditável gravata- borboleta, extremamente harmoniosa com o conjunto.
           – Cínthya? Filha do Dr. Ciro? Vestida como uma princesa, aventureira como um guri – comenta sua colega Daviana Paula Leal, 31 anos.
           Eu ouvia e comparava sua meninice com as atitudes de nossa relação, tudo fazia sentido, é apaixonada por esportes (rapel, surf, maratona) e longas viagens, detesta ser favorecida, odeia depender de alguém, escolhe o traje do dia em função de um acessório e coleciona gravatas. A “profe” Neusa recorda de sua inteligência elétrica.
           – Ela não marcava a linha com o dedo no momento de ler, veio alfabetizada para a 1 ª série e terminava as tarefas antes da turma.
           Cínthya não admitia perder tempo. Enquanto esperava a classe encerrar os trabalhos, inventava presentes, trazia cola e fitas. Seu estojo de lápis se assemelhava a uma caixinha de costura.
           – Criava brincos e pulseiras e me entregava, e depois cobrava quando não colocava, lamentando que eu não tinha gostado – ri Neusa.
           Minha esposa continua igual, repara se uso ou não o presente e exige que seja sincero. E nunca renunciou o hábito de elaborar camisetas e quadros para os aniversários dos amigos.
           A vizinha Terezinha Paludo, 68, destaca que ela chefiava as filhas Patrícia e Angela nas brincadeiras:
           – Era a menor e a mais decidida. Organizou o concurso Miss Rua Nereu Ramos, em que convocava as conhecidas para desfilar de maiô.
           -  Consertava as Barbies do bairro, já sonhava em ser médica – confessa Angela, 31 anos, uma de suas assistentes de beleza na época.
           Compreendi que a Cínthya é a própria cidade: sensível, desconfiada, destemida, direta. Para tocar o coração do passado, entrei na residência em que ela morou até se mudar para Passo Fundo, em 1990.
           O casarão está abandonado, pronto para ser demolido. Procurei a seringueira no pátio, árvore da qual ela caiu aos cinco anos e que sobreviveu graças ao socorro rápido do pai, mas não estava mais lá. Procurei seu quarto amarelo, mas não havia cor nas paredes para diferenciar os cômodos.  Sentei na borda da piscina suja e com água a meia- altura, fechei os olhos e, por um breve momento, parecia que ouvia os pedais de uma bicicleta. Uma menina gargalhava e dava voltas pelas bordas. Cada vez mais rápidas. Era Cínthya aprendendo a andar com a bicicleta rosa de rodinhas.
           Eu agora poderia amá- la pela vida inteira, com toda a vida dela: conhecia sua infância.


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